“(…) a luz não é similar, ou homogênea, mas consiste em raios disfórmicos, alguns dos quais são mais refratários do que outros”, descreve Isaac Newton em seu artigo em que relata, cheio de adjetivos, o belo experimento e observações que comprovaram sua teoria sobre as cores e a luz para membros da sociedade científica inglesa. Publicado em 1671 no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society (n.80, 1671-72), deveria ser um privilégio, para os amantes das ciências e da física, ler o paper desse cientista grandioso que revolucionou a física de seu tempo. Afinal, acessar os arquivos centenários da prestigiosa Royal Society de Londres não é para qualquer um. Ledo engano. Em se tratando do Philosophical Transactions, considerado o protótipo dos periódicos científicos contemporâneos (6 de março de 1665), felizmente está disponível a todos àqueles que tenham interesse. A digitalização de sua coleção completa pode ser acessada online. Dentre os autores ilustres estão Michael Faraday e Charles Darwin.
Imagem de flechas indígenas envenenadas - Tábua VIII do artigo "De variis plantis veneniferis" de Dr. J.B. de Lacerda Vol.XV, 1909.Crédito: Reprodução Arquivos do Museu Nacional
Capa do primeiro exemplar do Philosophical Transactions, 1665
Crédito: Reprodução Arquivos do Museu NacionalEsse é um movimento que tem se multiplicado entre os periódicos mais tradicionais e de valor histórico, sobretudo daqueles que continuam ativos. Este é o caso de dois dos mais prestigiosos periódicos científicos internacionais: o inglês Nature (de 1869) e o norte-americano (1880), ambos com presença marcada na mídia, e com coleções completas online. Uma visita nos arquivos revela contribuições clássicas do ensino das ciências, muito embora quem as ensine e aprenda, muitas vezes, não tenha corrido os olhos sobre os originais. A interessante nota “Proposes map of Brazil on the scale of one to a million”, publicado na Science, em 14 de março de 1919, traz o anúncio de novo mapeamento do Brasil, o qual veio a contribuir para a conclsão futura do delineamento completo do país. “Espera-se que um mapeamento satisfatório de metade da área total deve estar concluída em tempo para a celebração do centenário da independência do Brasil, em 1922, e a outra metade ficando para o segundo centenário da independência”. Difícil imaginarmos não apenas a dificuldade do processo de mapeamento, como uma aprovação relativamente recente.
As coleções digitais de periódicos são fundamentais para a preservação da memória científica e facilitam o trâmite daqueles que antes enfrentavam a burocracia e os obstáculos na localização de artigos de coleções em papel guardadas, espalhadas, ou mesmo deterioradas nas inúmeras bibliotecas universitárias e institucionais. Apesar dos atrativos, a versão online ainda é minoria entre os periódicos nacionais, seja pelos custos de digitalização ou pela percepção de que não são prioritárias para a pesquisa contemporânea. Atualmente, a Biblioteca Eletrônica Científica Virtual (SciELO – Scientific Electronic Library Online), reúne 224 periódiocos brasileiros dos quais apenas 24 disponibilizam sua coleção completa, muito embora apenas a metade possua edições mais antigas que a idade do próprio SciELO, inaugurado em 1997, e 8 somam mais de 50 fascículos. Dentre eles, o Memórias do Instituto Oswaldo Cruz é o mais antigo e numeroso, com 404 edições. A coleção completa, lançada no final de 2009 em comemoração ao centenário do Memórias, foi fruto de uma parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com a Bireme e SciELO, assim como ocorreu com outros 14 periódicos. É possível ler gratuitamente a nota de Carlos Chagas sobre o ciclo da doença de Chagas ou a tripanossomiase americana “Nova tripanozomiaze humana: estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., ajente etiolojico de nova entidade morbida do homem” (Vol.1, n.2, 1909), com a ortografia original preservada. Na edição de 1946 da Bragantia, periódico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), é possível verificar que os autores Coaraci Franco e Hernâni Godói concluíram no artigo “Chuvas e umidade relativa do ar em Campinas de 1890 a 1945” (Vol.6, no.5) que as mudanças climáticas não estariam ocorrendo na região e que a doença de citrus Tristeza, portanto, não estaria relacionada aos fatores analisados.
Dentre os demais periódicos nacionais a situação é mais severa quanto à ausência ou falha na digitalização das coleções. Façamos uma análise apenas com alguns dos periódicos mais antigos, como é o caso dos periódicos médicos Propagador das ciências medicas (1827-1828) e o Semanário de Saúde Publica, de 1831 a 1833 – primeira publicação da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro –, ambos descontinuados precocemente, e não digitalizados, apesar de seu pioneirismo. Os periódicos médicos científicos no Brasil surgiram, segundo o historiador Marcio Rangel, juntamente com a institucionalização da medicina no país, na segunda metade do século XIX, e funcionavam como mediadores entre os especialistas e as camadas letradas. Portanto, eles privilegiavam a divulgação de temas ligados a higiene, garantindo assim, uma audiência mais ampla. Sua leitura, consequentemente, pode trazer interessantes indícios sobre os costumes, a divulgação da medicina para a sociedade e os relatos científicos.
Outro exemplo é o Arquivos do Museu Nacional, auto denominado o “mais antigo periódico do Brasil (1876)”, que disponibiliza apenas os exemplares de 2003 a 2007 online. A publicação contou com importantes artigos sobre antropologia, a exemplo de “Descripção dos objectos de pedra de origem indígena”, do naturalista Charles Frederic Hartt, no número de estreia. O Arquivos, bem como inúmeras publicações lançadas pelos institutos de pesquisa brasileiros, faziam parte de uma tradição científica que priorizava a comunicação científica. Era uma forma de mostrar a produção científica no exterior, conquistar visibilidade e participar do debate internacional. O Observatório Nacional lançou o Annales de L'Observatoire Imperial de Rio de Janeiro, em francês, que foi descontinuado por falta de apoio do governo imperial, constando apenas exemplares entre os anos de 1882 e 1889, e que tampouco estão digitalizados.
Há exemplos de coleções nacionais digitalizadas disponíveis em site estrangeiro, apesar de não estarem localizadas nos sites institucionais aos quais pertencem. Este é o caso do Boletim do Museu Paraense, criado em 1894 pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e incluindo a produção de 1894 a 1896. Publicado em português, apesar do interesse de visibilidade no exterior, a publicação de 2006 aos dias atuais está disponível no site do SciELO, embora a coleção completa esteja abrigada no interessante site norte-americano Internet Archives, dando a impressão de ter mais valor no exterior do que nacionalmente. Este é também caso da Revista do Museu Paulista, lançada em 1895 pelo Museu Paulista, com enfoque na divulgação da zoologia. O belo arquivo online de todos os exemplares escaneados não aparecem no site da instituição.
Exceção é a publicação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de 1839, uma das mais antigas do país, a Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico Geographico Brasileiro, publicada até os dias atuais. A coleção completa encontra-se no site do Instituto, muito embora as buscas sejam possíveis apenas por ano e não por meio de uma ferramenta de busca que permita localizar autores, temas abordados etc, como nos arquivos em PDF, já que esses exemplares foram escaneados tal qual as versões impressas. Mas trata-se, certamente, de uma bela iniciativa.
Há ainda exemplos como a revista Ciência & Cultura, da qual sou editora, que está apenas parcialmente indexada no SciELO, a partir dos números de 2002. A comemoração dos 60 anos da publicação, em 2009, no entanto, foi uma oportunidade para o lançamento da versão impressa e digital fac-similada da primeira edição, de 1949. Nela, consta, por exemplo, nota pioneira de Maurício Rocha e Silva e Wilson Beraldo em que anunciam “Um novo princípio auto-farmacológico (Bradicinina) liberado do plasma sob a ação de venenos de cobra e da tripsina”, substância que seria posteriormente patenteada no exterior e se tornaria uma lucrativa droga de combate à hipertensão pelo Laboratório Bristol Myers-Squibb. A partir dessa experiência a revista planeja a digitalização dos 372 exemplares restantes, uma vez que existe uma demanda mensal da comunidade científica, por meio da digitalização de artigos específicos que são enviados por email.
Espaço apenas para atualidade?
Carol Tenopir e Donald King (Vol.25, n.1, 2001), com base em estudos no período da década de 1970 até 2001 realizado com cientistas, principalmente dos Estados Unidos, indicaram que os periódicos científicos são os principais veículos de obtenção de informação e são amplamente lidos. “O volume de conhecimento científico registrado em periódicos científicos dobra a cada 15 ou 17 anos”, afirmaram os autores do estudo. E essa crescente produção de informação também aparece no acesso de artigos por cientista; a média de leitura de artigos científicos aumentou de 120 por ano na década de 1990 para 130 a partir do século XXI, sendo que os cientistas premiados leem mais, na média, do que os aqueles que nunca receberam um prêmio. A maioria acompanha entre 18 e 26 periódicos por ano. O que surpreende é o fato de os cientistas “escanearem”, cada vez mais, um número maior de artigos e diminuírem, consequentemente, a leitura completa desses documentos, ou seja, cai a qualidade da leitura. Em 1990, os cientistas liam cerca de 50 artigos por ano e escaneavam em torno de outros 180, enquanto no ano 2000 a leitura completa caiu para cerca de 40 artigos e os olhos correram sobre mais de 220 artigos por ano; e em 2005, esses números teriam caído para cerca de 30 e superado 280, respectivamente, como concluiu Allen Renear e Carole Palmer (Science, Vol.325, n.828, 2009).
A competitividade acirrada para a produção científica, grandes volumes de informação e o imediatismo parecem ser os principais fatores responsáveis pela valorização de artigos e informações científicas atualizadas. Nesse cenário, os artigos pioneiros ou mais antigos viram objetos de estudo de historiadores, com interesse diminuto no fazer científico atual. Passam, assim, a ser vistos como mera curiosidade, afinal eles têm pouco espaço nas citações de artigos contemporâneos já que seus conteúdos consistem em descobertas que, muitas vezes, estão desacreditadas ou mesmo se tornaram fatos científicos, cuja autoria passa a ser omitida. No entanto, são obras que contribuem para a construção do conhecimento e para a compreensão dos processos científicos. Sua leitura, porém, raramente está presente no atribulado cotidiano dos cientistas ou futuros cientistas. Não seria irreal imaginarmos o absurdo de um biólogo em formação aprender sobre a teoria de evolução de Charles Darwin sem nunca ter lido ao menos a obra magna A origem das espécies; ou um físico criticar a física quântica sem ter admirado os breves e revolucionários artigos de Albert Einstein dos anos de ouro. Essa, no entanto, parece ser muito mais a regra do que a exceção.
Não se trata de mera valorização histórica, mas de uma oportunidade de perceber as transformações sobre o modo de fazer e escrever sobre ciência, a constante interpretação sobre a construção do conhecimento.
Há ainda um longo caminho até que os editores e agências de fomento reconheçam a importância da digitalização de coleções antigas de periódicos científicos. Mas há, certamente, um enorme potencial que elas guardam que poderia servir como um grande aliado da divulgação da ciência entre os apaixonados, os interessados e aqueles que se pretende atrair para a academia. Uma vez digitalizadas, essas coleções deverão ainda contar com ferramentas de busca para facilitar a localização de autores e temas de interesse. O próximo passo será explorar ao máximo o vasto tesouro de informações que as coleções possuem. Contar com curadores que indiquem aos usuários artigos pioneiros, curiosos, interessantes, capazes de encantar os leitores e recuperar seu valor literário e científico parece ser uma proposta tangível. Não seria demasiado esperar que em breve um estudante do ensino médio enxergue Newton não apenas como autor das leis da mecânica, mas também como um homem que, levado pela curiosidade, respondeu a perguntas que lhe intrigaram exatamente como intrigam muitos de nós.
Germana Barata é doutora em história da ciência pela USP, editora da revista Ciência & Cultura e pesquisadora do Labjor-Unicamp.
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